No meio do caminho havia um mangue: impactos socioambientais da estrada Bragança-Ajuruteua, Pará (2024)

O artigo investiga os impactos socioambientais da construção da rodovia PA-458, que aterrou 26km de manguezal entre o município de Bragança e a praia de Ajuruteua, no nordeste do Pará. Com base em documentos oficiais, jornais, fotografias e relatos orais foram analisadas as representações de políticos, moradores e mariscadores de caranguejo sobre os significados da rodovia. Conclui-se que as autoridades desconsideraram os impactos ambientais causados no manguezal e no cotidiano dos mariscadores de caranguejo, que, mesmo avaliando a estrada como positiva, são confrontados com a escassez progressiva do crustáceo e com o aumento do número de atravessadores.

natureza; rodovia; mariscadores de caranguejo; Bragança (PA; Amazônia

The article investigates the social and environmental impacts of construction of Highway PA-458, which turned 26km of mangrove swamp into a landfill between the municipality of Bragança and Ajuruteua beach in northeastern Pará. Working with official documents, newspapers, photographs, and oral accounts, it analyzes politicians’, local residents’, and crab harvesters’ representations of the significance of the highway. It is concluded that officials have disregarded the environmental impact both on the mangrove swamps and on the daily lives of crab harvesters. While the latter may even view the road as positive, they have been confronted with a progressively dwindling crab population and a growing number of crab dealers.

nature; highway; crab harvesters; Bragança, Pará; Amazon

Este artigo tem como objetivo analisar os impactos socioambientais da construção da rodovia PA-458, entre a cidade de Bragança e a praia de Ajuruteua, no Pará, especialmente do ponto de vista dos mariscadores que vivem da coleta do caranguejo-uçá (Ucides cordatus).

O suporte documental para a análise dos impactos socioambientais da construção da rodovia compreende, num primeiro momento, documentos oficiais da prefeitura de Bragança, jornais e fotografias, utilizados para referir o contexto de construção da estrada. Num segundo momento, fazemos uso de fontes orais, a fim de analisar como os mariscadores de caranguejo compreendem os impactos provocados pela rodovia em seu cotidiano. O trabalho de campo foi realizado por Marcus Vinícius Cunha Oliveira, entre 2010 e 2014, como parte da pesquisa de mestrado que resultou na dissertação A estrada para o “progresso”: política, cultura e natureza em Bragança, Pará (1970-1996), defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA) (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Marcus Vinícius Cunha. A estrada para o “progresso”: política, cultura e natureza em Bragança, Pará (1970-1996). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Pará, Belém. 2015.).

Com questionários abertos, foram entrevistados dez mariscadores, todos residentes na comunidade de Bacuriteua, às margens da estrada que cortou o manguezal, em Bragança. Alguns dos entrevistados trabalhavam no local antes da construção da rodovia, outros eram mais jovens, o que permitiu identificar diferentes percepções sobre a atividade após as alterações ambientais promovidas pelo aterramento de parte do manguezal.

Em 22 de novembro de 2014, o pesquisador acompanhou um grupo de quatro mariscadores na busca do caranguejo, saindo da comunidade de Bacuriteua, às sete horas, e retornando às 17 horas, atividade fundamental para a compreensão de todo o processo da coleta do crustáceo. Estar entre eles revelou aspectos que somente a experiência de campo poderia fazê-lo, tais como o modo de pisar no lamaçal movediço, como manter o equilíbrio entre as raízes das plantas ou como capturar o caranguejo sem ser ferido por ele. Desse modo, a “experiência etnográfica“ (Clifford, 1998CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 1998.) entre os mariscadores enriqueceu nosso “olhar, ouvir e escrever” (Oliveira, 2000OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Unesp. 2000.) sobre o trabalho deles.

Até meados do século XX, uma estrada de ferro fazia a ligação entre Belém e a cidade de Bragança, no nordeste do estado do Pará. Em 1964, a Estrada de Ferro Belém-Bragança (EFB) foi desativada, e a cidade de Bragança retornou à sua tradicional fonte de subsistência: a exploração dos recursos pesqueiros (Carvalho, 2000CARVALHO, Elena Almeida de. Impactos ambientais na zona costeira: o caso da estrada Bragança-Ajuruteua, estado do Pará. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 2000., p.35). Depois da desativação, a EFB passou a ser lembrada com forte saudosismo, ao mesmo tempo que se criticava a proclamada estagnação econômica da região.

A zona da estrada de ferro era apontada como importante centro de desenvolvimento do estado do Pará, funcionando como fonte de produção agrícola destinada ao abastecimento da capital e de outras regiões. A suposta derrocada da zona bragantina se teria materializado com a substituição do transporte ferroviário pelo rodoviário. A consequência disso teria sido a conversão da produção agrícola em um sistema nada rentável, pois o alto frete rodoviário fazia com que a mercadoria produzida em pequena escala na zona bragantina não tivesse condições de competir no mercado.

Com a desativação da estrada de ferro, autoridades políticas de Bragança começaram a defender a construção de uma rodovia entre a sede do município e a praia de Ajuruteua, como forma de atrair turistas e criar alternativa para a economia local. O problema é que, no meio do caminho, havia um mangue. O município de Bragança está inserido na região que detém uma das maiores reservas de manguezais do mundo (Fernandes, 2003FERNANDES, Marcus Emanuel Barroncas. Os manguezais da costa norte brasileira. Maranhão: Fundação Rio Bacanga. 2003.) nas latitudes próximas à linha do Equador, litoral amazônico, entre a foz do rio Oiapoque (no Amapá) e a baía de São Marcos (no Maranhão), área conhecida como “costa norte”.

A estrada começou a ser construída em 1973, abrindo caminho de 45km entre a sede do município e a praia. No discurso oficial, o aterramento de parte do manguezal seria compensado com o anunciado “desenvolvimento“ que a rodovia traria para o município. Conforme a socioantropologia do desenvolvimento,

o sistema de ajuda ao desenvolvimento é visto como uma máquina que despolitiza os temas que deve enfrentar (redução da pobreza, combate ao desmatamento, redução do aquecimento global etc.), que inventa problemas com os quais sua expertise pode lidar e que desconsidera outros que seriam politicamente espinhosos (Carneiro, 2012CARNEIRO, Marcelo Sampaio. Práticas, discursos e arenas: notas sobre a socioantropologia do desenvolvimento. Sociologia e Antropologia, v.2, n.4, p.129-158. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-38752012000400129&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 29 jun. 2017. 2012.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p.132).

Foi o que ocorreu em Bragança, uma vez que o projeto de “desenvolvimento” anunciado a partir da construção da estrada desconsiderava a participação dos moradores locais, possuidores de interesses próprios e de universos simbólicos divergentes. Esse modelo continuava como prioridade mesmo diante de todas as consequências socioeconômicas registradas após a implantação de rodovias na Amazônia, tais como a Belém-Brasília e a Transamazônica (Becker, 1977BECKER, Bertha. A implantação da rodovia Belém-Brasília e o desenvolvimento regional. Anuário do Instituto de Geociências/UFRJ, v.1, p.32-46. 1977.; Petit, 2003PETIT, Pere. Chão de promessas: território, política e economia no Pará pós-1964. Belém: Paka-Tatu. 2003.; Castro, 2008CASTRO, Edna. Sociedade, território e conflitos: BR 163 em questão. Belém: Naea/UFPA. 2008.).1 1 Os projetos de colonização da Amazônia durante a ditadura civil-militar foram baseados no Programa de Integração Nacional (PIN), sustentados pelo conceito de planejamento de eixos de desenvolvimento. Nesse sentido, investiu-se na construção de estradas de longa distância como a Transamazônica, Perimetral Norte, Cuiabá-Santarém e Cuiabá-Porto Velho-Manaus, que foram planejadas para o estabelecimento dos chamados “corredores de desenvolvimento”, incentivando-se a migração de trabalhadores para a região. Contudo, a construção dessas estradas causou sérios impactos socioambientais (Kohlhepp, 2002; Pereira, 2013).

As condições naturais do ecossistema amazônico impuseram dificuldades ao empreendimento. Assim, os construtores da estrada tiveram que lidar com as fortes chuvas que costumam cair nos primeiros meses do ano na região, com o solo movediço do manguezal, imensas árvores no meio do caminho e diversos rios que foram aterrados ou que só puderam ser superados com pontes de madeira. Nesse sentido, o relato do mariscador José Monteiro da Silva (28 jan. 2014SILVA, José Monteiro da. [Depoimento]. Entrevistador: Marcus Vinicius Cunha Oliveira. Bragança. 1 arquivo mp3 (44 min. 45 seg.). Depoimento concedido para pesquisa de dissertação de mestrado desenvolvido no PPHIST/UFPA. 28 jan. 2014.) é bastante significativo:

quando eles botavam a piçarra no mangue, as primeiras camadas era mermo que soltar dentro d’água: ia embora pro fundo, ia rachando tijuco, ia derrubando mangueiro, ia espocando raiz, era tudo, era assim. Aí... das outras é que já ia... já em cima daquela primeira camada era que eles iam continuando a levar o aterro pra frente e foi nisso que... até findaram.

Mesmo diante da expectativa de desenvolvimento que se criava com a construção da estrada entre Bragança e a praia de Ajuruteua, a difícil situação econômica pela qual passava o município, as dificuldades impostas pela natureza da região e a falta de recursos, devido à diminuição dos investimentos no setor rodoviário e ao bloqueio de verbas (Ajuruteua, 17 jul. 1982AJURUTEUA. Jornal do Caeté, Bragança, Pará, p.3. 17 jul. 1982., p.3), atrasaram a conclusão da rodovia. A obra teve início no governo de Fernando Guilhon (1971-1975), estendeu-se pelos governos de Aloysio Chaves (1975-1978) e Alacid Nunes (1979-1983) e foi concluída com asfaltamento somente em 1991, na gestão do governador Jader Barbalho (1991-1994).

Jader Barbalho afirmava que era preciso explorar as condições naturais e culturais da região em favor dos paraenses. Seu discurso era regionalista, porém muito semelhante ao dos militares: mesmo diante da repercussão das resoluções da Conferência da União das Nações Unidas (ONU), em Estocolmo (1972), ele defendia de forma utilitarista o aproveitamento das possibilidades econômicas da região.2 2 Segundo Pádua (2002), a visão utilitarista da natureza existe no Brasil desde o século XVII, quando as primeiras críticas ambientais questionavam a forma destrutiva do trato com o ambiente. Influenciados pela fisiocracia iluminista, a preocupação dos críticos estava centrada, de fato, num melhor aproveitamento econômico, não na natureza em si. Com relação ao século XX, Iane Batista (2016) destaca o lugar dos “recursos naturais” nos Planos de Desenvolvimento da Amazônia, entendidos inicialmente como crescimento econômico, passando a incorporar, posteriormente, o viés da sustentabilidade. Os militares se contrapunham às expectativas das lideranças da ONU na Conferência de Estocolmo e justificavam a exploração da natureza visando combater um tipo de poluição que, segundo eles, era pior: a pobreza (Dean, 1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.; Duarte, 2005DUARTE, Regina Horta. História e natureza. Belo Horizonte: Autêntica. 2005.).

A implantação da rodovia promoveu mudanças nas dinâmicas sociais das comunidades atravessadas por ela e no ecossistema do manguezal. Surgiu em meio à população local uma expectativa de desenvolvimento, subsidiada por mudanças em suas atividades econômicas, assentadas na introdução do transporte rodoviário. Por outro lado, “o contato com a cidade alterou o rol de aspirações dos pescadores e de seus filhos, não só em termos de moradia, vestuário, lazer, mas também, e principalmente, em termos de escolarização, condições de saúde e emprego” (Maneschy, 1993aMANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua: uma comunidade pesqueira ameaçada. Belém: CFCH/UFPA. 1993a., p.10).

O manguezal, um dos principais ecossistemas costeiros da Amazônia brasileira, ocupa 4.500km2 2 Segundo Pádua (2002), a visão utilitarista da natureza existe no Brasil desde o século XVII, quando as primeiras críticas ambientais questionavam a forma destrutiva do trato com o ambiente. Influenciados pela fisiocracia iluminista, a preocupação dos críticos estava centrada, de fato, num melhor aproveitamento econômico, não na natureza em si. Com relação ao século XX, Iane Batista (2016) destaca o lugar dos “recursos naturais” nos Planos de Desenvolvimento da Amazônia, entendidos inicialmente como crescimento econômico, passando a incorporar, posteriormente, o viés da sustentabilidade. na costa do estado do Pará, correspondendo a cerca de 1/5 dos manguezais de todo o Brasil (Maneschy, 1993bMANESCHY, Maria Cristina. Pescadores nos manguezais: estratégias, técnicas e relações sociais de produção na captura de caranguejo. In: Furtado, Lourdes; Leitão, Wilma; Mello, Alex Fiuza de (Org.). Povos das águas: realidade e perspectiva na Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. p.19-62. 1993b., p.23). Situa-se na confluência do ambiente terrestre com o marinho em regiões subtropicais e tropicais. Com seus animais e plantas oriundos da terra e do mar, tem papel importante na história evolutiva das comunidades humanas litorâneas, constituindo fonte indispensável de recursos que têm garantido o estabelecimento e a vivência dessas comunidades. Nesse sentido, “o manguezal nunca pode ser apreendido como espaço estritamente da natureza” (Campos, 2012CAMPOS, Ipojucan Dias. Cotidiano no manguezal: coletores e estratégias de sobrevivência na natureza. História Oral, v.15, n.1, p.381-407. 2012., p.383).

Quando se percorre a rodovia no sentido Bragança-Ajuruteua, nota-se um grande contraste: do lado direito, o manguezal vivo, com suas árvores de pé. Do lado esquerdo, a floresta devastada e o mangue em processo lento de recuperação e autoadaptação, resultado do aterramento (Figura 1).

Figura 1
: Floresta de manguezal em Bragança, às margens da PA-458 (Foto: Márcio Couto Henrique, 2015)

Para que se mantenha, o ecossistema de manguezal necessita de condições específicas, como teor de salinidade adequado à vegetação; costas protegidas de ondas e marés violentas; amplitude de marés e terrenos com fraco declive, para permitir que a água do mar penetre; solo composto de silte e argila fina, rica em matéria orgânica; e temperaturas tropicais. Outra dependência desse ecossistema é a livre circulação das águas, pois grande parte do material orgânico (nutrientes) produzido pelas árvores é trazido pelas águas marinhas e continentais (Maneschy, 1993aMANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua: uma comunidade pesqueira ameaçada. Belém: CFCH/UFPA. 1993a.). Assim, o aumento do nível relativo do mar pode resultar no recuo dos manguezais em direção ao continente, como resultado da frequência de inundações. A região bragantina é caracterizada por penínsulas cortadas por canais de maré que ligam o manguezal ao estuário.

Na prática, a abertura da praia de Ajuruteua como espaço de lazer foi feita para atender, especialmente, turistas da capital (Belém), de cidades vizinhas e estrangeiros. Helena Costa (2013COSTA, Helena Araújo. Destinos do turismo: percursos para a sustentabilidade. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2013., p.46) alerta que “o excesso de dependência do turismo nos locais de destino é poucas vezes percebido como problema, porém é uma temática crucial para questões de sustentabilidade e para a sobrevivência econômica regional em longo prazo”. Com a estrada, aumentou o número de turistas, mas houve encarecimento dos produtos no comércio e crescimento demográfico.

Além disso, a terra entrou no circuito da mercadoria e da apropriação privada, estimulando a especulação imobiliária. A instalação da indústria hoteleira fez pouca diferença, já que os hotéis são de pequeno porte e costumam receber turistas somente durante as altas estações, especialmente no mês de julho, criando empregos periódicos e com baixos salários. As alterações ambientais foram enormes. A geomorfologia do mangue mudou significativamente nos últimos anos, e o resultado tem sido a retração dos manguezais no litoral, sobretudo por conta do aterramento de parte desse ecossistema para a construção da rodovia. Com isso, a areia cobriu as camadas de lama, obstruiu as águas de maré e asfixiou a vegetação (Lara, Cohen, 2003LARA, Rubén; COHEN, Marcelo. Sensoriamento remoto. In: Fernandes, Marcus (Ed.). Os manguezais da costa norte brasileira. São Luís: Fundação Rio Bacanga. p.11-28. 2003.).

Além da “morte” de parte do mangue e de inúmeros elementos da fauna e da flora por conta da barragem que alterou o fluxo da maré, houve o acúmulo de lixo na praia, construções irregulares nas dunas e o aumento da exploração de peixes e caranguejos, devido ao fácil acesso proporcionado pela via terrestre, ocasionando a diminuição desses recursos.

O turismo foi um dos fundamentos da política econômica do governador Jader Barbalho, que explorava a noção da “viagem contemporânea à natureza” (Bruhns, 2010BRUHNS, Heloisa. O ecoturismo e o mito da natureza intocada. Acta Scientiarum, v.32, n.2, p.157-164. 2010., p.158), profundamente relacionada ao mito da natureza “intocada” ou “selvagem”. Nessas áreas, os moradores das cidades encontrariam refúgio para as atribulações do mundo urbanizado, apreciando o belo e recompondo sua paz interior (Diegues, 2000DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec/USP. 2000.).4 A partir disso, investiu-se na construção do imaginário da praia de Ajuruteua como a “Princesinha do Atlântico”, conforme veremos a seguir.

O asfaltamento da estrada Bragança-Ajuruteua compunha um plano integrado de turismo interno que abrangia outros municípios paraenses com praias de potencial turístico, mas que eram pouco visitadas por falta de estrutura viária. Apesar das claras alterações no ambiente e dos problemas acarretados pela intervenção antrópica, a construção da estrada foi defendida abertamente por políticos, poetas, jornalistas e por grande parte da população bragantina, alimentados, especialmente, pela esperança do propagado desenvolvimento que o turismo poderia proporcionar e pela opção de lazer em lugar tido como belo e aprazível.

Em fevereiro de 1975, o prefeito José Maria Cardoso defendia o turismo como salvação para Bragança:

Acredita o prefeito que os recursos naturais de Bragança, até hoje desconhecidos para a maioria dos paraenses, formam um grande manancial de atrativos, paisagens que permitirão bons momentos de lazer, práticas de esportes e outros divertimentos. ... As praias de Ajuruteua, como são conhecidas pela população bragantina, constituem um cenário que não ficam [sic] nada a dever aos demais balneários do estado (Turismo..., 9 fev. 1975TURISMO... Turismo é a esperança de Bragança. A Província do Pará, 2º caderno, p.11. 9 fev. 1975., p.11).

O prefeito apostava nas condições naturais de Bragança como atrativo para os turistas. Afinal, o município exibiria praias “desconhecidas” que proporcionariam uma experiência “aprazível” de contato com a natureza, associada a momentos de lazer e divertimento. A matéria do jornal A Província do Pará (Turismo..., 9 fev. 1975TURISMO... Turismo é a esperança de Bragança. A Província do Pará, 2º caderno, p.11. 9 fev. 1975., p.11) acompanhava uma fotografia da praia de Ajuruteua, explorando visualmente o imaginário apontado pelo prefeito (Figura 2).

Figura 2
: Imagem de Ajuruteua inexplorada (Fonte: Turismo..., 9 fev. 1975TURISMO... Turismo é a esperança de Bragança. A Província do Pará, 2º caderno, p.11. 9 fev. 1975., p.11)

O discurso do prefeito explorava a ideia da satisfação dos indivíduos em um lugar de “natureza selvagem”, “inocência infantil”, “refúgio” e “intimidade”, imaginário que exerceu grande influência na criação de áreas naturais protegidas nos EUA e no Brasil. Esses espaços agradáveis eram considerados ilhas de grande beleza e valor estético que conduziriam o ser humano à meditação sobre as maravilhas da “natureza intocada”, ou seja, a busca de uma wilderness (vida natural/selvagem) (Diegues, 2000DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec/USP. 2000.).

A construção da imagem de Ajuruteua como paraíso natural foi reforçada pela penetração da estrada na imensa floresta de mangue. O tamanho e o grande número das árvores, os caranguejos andando na estrada e os pescadores saltando dos botes com o pescado amarrado em cipós são elementos que compõem o imaginário de quem frequenta o lugar, trazendo a impressão de abundância e facilidade na aquisição do alimento. Até a década de 1990, era possível ver, à beira da estrada, placas que indicavam “Cuidado, caranguejo na pista”, alimentando esse imaginário edênico.

Além das praias, havia um conjunto de opções que poderiam ser exploradas para a prática de camping, caça e pesca, igarapés e áreas de campo, além da possibilidade de estabelecimentos de granjas. De acordo com o prefeito de Bragança, Ajuruteua apresentava outras vantagens, com extensas áreas que possibilitavam a construção de edificações permanentes, como casas de campo e hotéis (Turismo..., 9 fev. 1975TURISMO... Turismo é a esperança de Bragança. A Província do Pará, 2º caderno, p.11. 9 fev. 1975., p.11).

A fim de comprovar as supostas vantagens turísticas da praia de Ajuruteua, o vereador Boulanger Ubiraci Nunes (27 mar. 1975NUNES, Boulanger Ubiraci. Requerimento apresentado à Câmara Municipal de Bragança em 27 de maio de 1975. Ofícios expedidos (1975-1976) (Arquivo da Câmara Municipal de Bragança, Bragança). 27 mar. 1975.) sugeriu que a prefeitura convidasse representantes dos meios de comunicação da capital para “melhor coletar dados e colher impressões na própria fonte, para a necessária divulgação”. Desse modo, procurava-se “vender” o espaço bragantino por meio do turismo, inserindo-o nas lógicas do mercado. Muito embora posterior a esse período, o conceito de cidade-mercadoria (Sánchez, 2001SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política. Revista de Sociologia e Política, v.16, p.31-49. 2001.) nos ajuda a descrever as práticas que ocorreram em várias cidades nesse período, Bragança entre elas.5 5 Todas as propagandas turísticas relacionadas a Bragança exploram substancialmente a festa da Marujada e a praia de Ajuruteua, num contínuo processo de espetacularização desses bens culturais, que está de acordo com o atual Plano Estratégico de Turismo do Estado (Pará, 2011).

Em abril de 1979, Jorge Ramos, poeta e diretor do Jornal do Caeté, percorreu um trecho da estrada pronta, acompanhado por Paulo Nunes, engenheiro responsável pela obra. Segundo matéria do referido jornal, “ao ouvir o marulho do mar, nos confins da estrada”, Ramos resolveu batizar a praia como a “Princesinha do Atlântico”, expressão que passou a ser usada nas propagandas turísticas do lugar. Paulo Nunes descreveu a praia como a “mais bela da região, em ambiente ainda não sofisticado, natural, o que vai representar um grande tento em favor de Ajuruteua” (Bem próximo..., 30 abr. 1979BEM PRÓXIMO... Bem próximo a conclusão da estrada que vai ligar Bragança com a praia de Ajuruteua. Jornal do Caeté, p.4. 30 abr. 1979., p.4).

Em julho de 1980, o colunista Helder Aranha (26 jul. 1980aARANHA, Helder. Nós não merecemos Ajuruteua? Jornal do Caeté, p.6. 26 jul. 1980a., p.6) dizia que “Ajuruteua é a nossa esperança. O turismo poderá ser a válvula que permitirá a este sofrido povo desfrutar dias melhores, sair da nossa situação de letargia econômica, industrial, educacional e etc.” Como se vê, eram grandes as expectativas projetadas na construção da rodovia.

De todo modo, o colunista estava atento às consequências do modelo de turismo implantado em Bragança. Em nota intitulada o “Perigo de Ajuruteua”, ele alertava para a cobiça sobre terrenos na região, que teria causado ocupação desordenada e representava “iminente perigo de invasão dos economicamente poderosos e [de] ser elitizada, perdendo assim sua principal característica natural, que é seu bucolismo” Aranha, 26 jul. 1980bARANHA, Helder. O perigo de Ajuruteua. Jornal do Caeté, p.6. 26 jul. 1980b., p.6). O jornalista temia que a praia viesse a se tornar um “reduto dos poderosos”, uma “nova Salinas”,6 6 Salinas é uma praia pertencente ao município de Salinópolis, no nordeste do Pará. É conhecida na região por ser frequentada pelas classes mais abastadas do estado. em detrimento dos interesses da população. Apesar das críticas, o espaço bragantino continuou sendo produzido e vendido como mercadoria (Sánchez, 2001SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política. Revista de Sociologia e Política, v.16, p.31-49. 2001.), acompanhado de uma série de discursos dos políticos locais e de setores da mídia, representando Ajuruteua como espaço paradisíaco.

Com a conclusão do asfaltamento da PA-458, em 1991, Edwaldo Martins (28 dez. 1991MARTINS, Edwaldo. Festa popular em Ajuruteua. A Província do Pará. 2º cad., p.1. 28 dez. 1991., p.1), colunista bragantino do jornal A Província do Pará, usou sua coluna para informar os leitores sobre o evento e enfatizou que Ajuruteua foi classificada pela revista Quatro Rodas como uma das mais belas praias do Pará. A expectativa de progresso estava relacionada ao potencial turístico incrementado pelo empreendimento rodoviário, que possibilitaria um “verão na beleza natural e selvagem da aprazível Ajuruteua” (O verão..., 15-22 jul. 1995O VERÃO... O verão na beleza natural e selvagem da aprazível Ajuruteua. O Semanário, ano 1, n.27, p.5. 15-22 jul. 1995., p.5).

Em 1995, a Secretaria de Turismo do Estado e a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur) pretenderam criar um centro de lazer na Princesinha do Atlântico Ajuruteua..., 18-24 ago. 1995AJURUTEUA... Ajuruteua com centro de lazer. O Semanário, ano 1, n.34, p.7. 18-24 ago. 1995., p.7). Na edição de 2 a 9 de julho de 1995, outro texto do mesmo periódico enfatizava a “aprazível” praia como uma das opções aos turistas da capital e das cidades vizinhas. A matéria destacava, também, as “belezas naturais” e uma idealizada “fartura” do pescado, que barateava os preços nos bares e restaurantes do balneário (Ajuruteua..., 2-9 jul. 1995AJURUTEUA... Ajuruteua, uma boa opção para seu veraneio. O Semanário, ano 1, n.25, p.3. 2-9 jul. 1995., p.4). Baseada numa articulada campanha de marketing, aos poucos se consolidou a imagem da Princesinha do Atlântico.

No processo de construção de Ajuruteua como espaço turístico, os sujeitos sociais que habitam os ambientes alterados com a construção da estrada foram deixados de lado. Assim, o foco foi a satisfação dos interesses de moradores urbanos abastados, e não dos trabalhadores rurais e extrativistas da região, privilegiando a indústria do lazer em detrimento da indústria extrativa ou agrícola.

De acordo com Bruhns (2010)BRUHNS, Heloisa. O ecoturismo e o mito da natureza intocada. Acta Scientiarum, v.32, n.2, p.157-164. 2010., o incentivo ao mercado turístico deve vir atrelado a outras políticas integradoras da população local nesse negócio, o que inclui cursos de capacitação ligados à área do turismo, para qualificar os moradores e inseri-los em atividades como indústria hoteleira e de prestação de serviços. Outras alternativas são a criação de políticas de financiamento para investimentos em atividades ligadas diretamente ao turismo ou a outas já existentes, como a indústria extrativa, com a formação de guias turísticos e oficinas de produção de artigos artesanais que fortaleçam a identidade cultural local, tornando os turistas testemunhos de seu estilo de vida (Bruhns, 2010BRUHNS, Heloisa. O ecoturismo e o mito da natureza intocada. Acta Scientiarum, v.32, n.2, p.157-164. 2010.; Costa, 2013COSTA, Helena Araújo. Destinos do turismo: percursos para a sustentabilidade. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2013.). Ao longo dessa pesquisa, não identif

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